sábado, 18 de maio de 2013

Frankenstein

A quem eu quero enganar? A todos vocês, é claro. Mas o fato é que, eu não sou escritor profissional e ainda me faltam alguns anos de prática para eu me tornar um amador.

Eu não tenho idéia alguma nesse momento, e qualquer começo de história parece me escapar agora. Até pouco tempo, estava me preparando para escrever um conto com uma moral e um final inesperado, mas acabei escrevendo duas páginas sobre os roteiros de filmes pornográficos e essa ditadura não dita sobre a raspagem total dos pelos vaginais.

Pensei em escrever sobre quando fui malhar anos atrás e levantei uns halteres de fisioterapia que ficavam no canto da academia, e comecei a suar forte e fazer caretas de dor para o espelho, e depois ter que mentir para os colegas falando que aquilo era só um aquecimento.

Poderia contar também a história do cientista que conseguiu se teletransportar enquanto estava no banho e foi parar debaixo do chuveiro de um sanatório em Londres. E que toda sua explicação de que ele era um cientista famoso que conseguiu se teletransportar não convenceu um dos enfermeiros, que lhe aplicou uma injeção que o fazia acordar todos os dias às 3 da manhã. Mas depois ele voltava a dormir porque era muito cedo.

Ou que eu preferia dar um aperto de mão em Edward Mãos de Tesoura do que pegar ônibus pela manhã.

Mas nada disso importa, porque o meu gato explodiu, um gorila mutante com um braço mecânico invadiu minha casa e comeu todas as minhas bananas, e hoje, quando eu fui ao banco à tarde, um grupo de assaltantes encapuzados, invadiu a agência, atirou para cima, anunciou o assalto, e roubou os cadarços dos sapatos de todos os clientes da agência.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Eu disse

Ela me deu um tapa na cara e me chamou de louco.

Uma vez, num show de rock, disse para uma menina com muito pó branco no rosto, cabelo preto como meu sapato originalmente branco, e um batom encandecentemente vermelho, que eu podia viajar no tempo e sempre sabia o que ia acontecer. E que naquela noite eu iria beijar o seu rosto e a veria nua. Mas era melhor ela não tirar a roupa.

Dei um beijo em sua bochecha e aconteceu o que você leu na primeira linha. Então ela se embebedou, subiu no balcão do bar e se despiu. Ela tinha esquecido que não se depilava a alguns meses. O que foi embaraçoso. Mas eu não ia estragar a surpresa.

Meninas

Góticas

Sonham com as trevas, escuridão, relâmpagos e o Batman como mordomo, carregando uma taça de cristal com sangue borbulhando dentro, enquanto caminha por um tapete de veludo vermelho e admira seus quadros obscuros pintados por artistas suicidas.

Acordam, vão para a escola e nunca conversam com ninguém. Desejam que todos entrem no ônibus da escola e o motorista tenha um aneurisma e perca o controle do veículo, que cairia num lago de ácido. E que a menina loira de olhos azuis consiga escapar, mas apenas com metade do corpo.

Até que algum garoto esquisito peça um lápis emprestado e suas trevas tenham dificuldade de escurecer a luz de uma pequena chama que lampeja em cima da cera que cobre o seu coração.

Um dia ela irá se casar e vai ter saudades de vestir preto e dos posters de suas bandas de integrantes com maquiagem nos olhos. E pensar que as trevas lhe faziam bem.


High Heels

Ela tem plumas em sua roupa. Todos os homens a desejam e querem conhecê-la mais a fundo. Mas não do jeito que ela se conhece.

Ela se olha no espelho e acha que está mais velha. Dali a algum tempo as notas de 10 dólares não serão mais colocadas em suas roupas.

Ela termina o seu show, e lava o seu rosto, esfregando bastante, porque odeia as barbas nojentas dos caras com casacos pretos e camisas escrito “Alabama 1949”.

Quando ela chega em casa tira sua jaqueta de couro tingido e sua blusa com a estampa do Voodoo Lounge e fica escutando Bob Dylan até Morfeu fazer sua mágica e ela dormir.

Ela não gosta de dormir, prefere estar acordada. Porque assim ela pode sonhar mais.


Lipídeos demais

Sua personalidade é uma das mais alegremente tristes que existem. Seus cabelos, unhas, roupas e sapatos sempre estão impecáveis.

Ela come um pedacinho de bolo de chocolate e poderia ter um orgasmo se ninguém estivesse por perto. Então ela vai até o banheiro lava as mãos e chora.

Ela está triste demais, por isso se afoga em donuts como um policial em horário de almoço.

Ela só queria que tudo aquilo acabasse e pudesse transar sem ter medo de sufocar o companheiro. Depois ela disse que gostava de chupar, porque lembrava um pirulito, e já que tinha passado algum tempo desde a hora do almoço, ela não viu problema algum.

Depois chorou novamente.

Lembrou-se que “O amor é cego” era o seu filme favorito, e voltou a sorrir. Falou para si mesma que o importante era aproveitar a vida, e não iria se importar se o seu corpo não estava como o das modelos. Ela estava feliz consigo mesma por não ter que se preocupar mais com isso.

Então a veia de seu coração entupiu e ela morreu.


Patrícia

Ela só queria um pouco mais de atenção dos garotos, porque seu pai estava ocupado demais traindo sua mãe.

As meninas dizem que ela é burra e não sabe conversar, mas os garotos pouco se importavam. Ela pergunta se está linda, mas os meninos não respondem, porque suas bocas estavam babando e seus cérebros estavam paralisados registrando o decote dela, porque mais tarde, à noite, isso seria útil para eles.

Agora ela tem 50 anos. O alvo de sua vida tem forma de cifrões e ela já não é tão bonita assim. Tem medo de envelhecer ainda mais porque não suportaria ver sua vagina comparada a um maracujá.

Ela diz que nunca foi por causa do dinheiro. Apenas não queria se sentir só. Mas se tranca no quarto por várias semanas, olhando suas fotografias de trinta anos atrás desejando que seu amanhã fosse como ontem.

sábado, 11 de maio de 2013

pô m

Bebendo um vinho na noite
com garrafas de sete reais
ainda bem que dividi com você

Garrafas espalhadas e vidros quebrados
ficou tudo uma bagunça e tivemos que arrumar
ainda bem que dividi com você

No café da manhã tinha apenas um pão
estávamos mortos de fome
ainda bem que dividi com você

Tivemos que almoçar com sua mãe
aquela lasanha estava detestável
ainda bem que dividi com você

Não tínhamos cobertor e nos abraçamos
trememos de frio aquela noite
ainda bem que dividi com você

Meses depois fui ao médico
Ele me disse que eu tinha HPV
ainda bem que dividi com você.

Exemplo de Kurt Cobain

Eu não posso escrever. Foi isso que o médico me contou. Antes de tudo tenho que lhe dizer que vivo numa realidade paralela a sua. Mas não sou diferente de você.

Esse tipo de doença realmente é um problema por aqui. Mas eu tenho que lhes contar essa história. Talvez essas sejam minhas ultimas palavras antes de eu explodir e me transformar num livro de auto-ajuda encostado numa estante de uma freira velha gorda que bate em gatos.

O médico me falou que não posso me conhecer o bastante. É doentio. É depressivo. E me faz ser desconfiado das pessoas, portanto me exclui e me faz infeliz.

Ele me deu o exemplo de Kurt Cobain, que está na outra sala chorando por conta do sucesso, Courtney Love e problemas do estômago. Então ele tem que tomar Quik de morango.

Parece brincadeira, mas é verdade. Ele mesmo me falou, em seu diário escrito com a mão esquerda, porque o braço direito estava doendo por conta das picadas de heroína.

É por isso que ele, quando saiu de casa naquele dia, começou a desaparecer para as pessoas. Ficou invisível para todos. Não de uma só vez. Mas, aos poucos. Aos poucos.

Então quando ele estava no meio do caminho, prestes a atravessar a rua, nem ele se via. E desapareceu.

Por isso não posso terminar a maldita história.

Merda.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

GoodBoys

Sim, sim. Eu tinha ido à casa da minha avó comprar LSD, quando a campanhia tocou. Eram os GoodBoys. Eles disseram que vendiam bíblias. Eu disse que não queria.

Então um deles chutou o meu estômago com um sapato de bico fino e enfiou uma caneta no meu nariz. Rasgou o meu rosto e me fez cosquinhas depois.

Eu falei que compraria todas as bíblias que ele quisesse, mas ele ficou com raiva de mim. Disse que não queria que eu comprasse mais. Ele tinha ficado chateado.

Por isso ele cortou a minha mão. E bateu na minha cara com ela. Com toda razão é claro. Afinal, o que mais eles poderiam fazer?

Poderiam estar matando, ou roubando. Mas só estavam vendendo bíblias. Eram bons rapazes.





É... Bem... Sim. Eu era a esposa de Johnny, um dos GoodBoys. Quer dizer, eu ainda sou.

Ele tem outros dois filhos e mora com outra mulher num outro país, mas... E dai? Não se pode ter tudo não é verdade? Hahaha

O que? Se Johnny batia em mim? Nããão, é claro que não! Era um doce de marido. Tratava minhas amigas como ninguém.

Digo... Eu lembro de uma vez... História engraçada...

Uma vez a televisão não funcionava. Aí ele pediu para eu consertar, mas eu não consegui. Então ele pegou a TV e jogou na minha cabeça. Levei 36 pontos. Eu perdi a memória por alguns dias. Ele me disse que eu era a empregada da casa, então eu limpei a privada com minha escova de dentes. Em seguida ele falou que minha irmã era a esposa dele. Um bobo.

Mas eu não acho que ele era agressivo. A Tv já estava velha mesmo, certo? Acho que ele teve um bom motivo. Mas é claro, que depois de tudo isso eu não deixaria as coisas como estavam. Por isso lhe pedi desculpas.

Se vocês tiverem um tempo, depois eu conto de quando ele bebia.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Porões

Depois que a babá chegou tudo ficou mais estranho. Meu marido agora passa mais tempo em casa, principalmente no porão. Às vezes, encontro ela saindo de lá.

Ela me diz que estava arrumando os brinquedos. E ele me diz que estava ajudando.

Me pergunto se estou sendo idiota. O que realmente eu não entendo é porque temos uma babá. Não temos nem filhos.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Minha história de fantasma

Eu estava de saída. Foi depois disso, quando cheguei em casa, que pensei em contar a minha história de fantasma, mas achei melhor não, porque ela me pediu para fazer silêncio. Eu tinha 12 anos e era idiota.

Talvez nem fosse um fantasma. Talvez alguém conseguiu atravessar de um universo paralelo para o nosso em um buraco de minhoca pelo tecido espaço-tempo  e depois desapareceu, porque acabou a energia da estrela. Obviamente.

Fui com minha mãe para a cidade. Minha mãe adora espíritos. Do bem. Ela pensa que os do mal vivem nas trevas, na escuridão e imersos em rios poluídos, com armas, calor e agonia. Ou aqui mesmo no Brasil.

Então saí de casa e fui para a parada do ônibus. Estávamos nos meses de inverno, acho que era Junho. Lembro disso porque era perto do meu aniversário. Chovia bastante, e como eu queria ser descolado, não levei um guarda-chuva. Só velhos com medo de ficarem doentes e meninas preocupadas com o cabelo, usam guarda-chuvas. Eu pensava. Então minha mãe disse para eu calar a boca e mandou eu voltar para pegar o guarda-chuva. E eu peguei. Depois fomos para o ponto do ônibus.

Fiquei esperando vários minutos. Os pingos eram grossos e faziam barulho de animais metálicos sapateando pelo zinco. Na parada estava eu, minha mãe e uma mulher muito velha, com um vestido branco florido, casaco jeans meio surrado, muitas pulseiras e braceletes vermelhos. E colares de bolinhas. E um par de brincos de pérolas. Falsas claro. O cabelo era amarelado, com pontas violetas. Você sabe, aquele violeta que velhas sempre tem no cabelo, por alguma razão ainda não muito bem explicada para mim.

Não era um tipo de velha que você tem pena, mas aquelas velhas que são tão velhas que talvez elas tenham feito um pacto com as trevas para viver tanto. E parecem morar sozinhas, em casas altas com móveis bem grandes, empoeirados e pesados, de madeira escura cheio de detalhes, com vários gatos pela casa.

Meu transporte estava chegando. Pude ver de longe os faróis amarelos num horizonte cinza e borrado. O clima estava muito frio e chovia muito. Então quando o ônibus parou. Saíram vapores de água do motor, parecendo que o veículo viera de outro mundo. E quando ele deu partida deixou à fumaça para trás. Juntamente com a velha, sozinha na chuva forte.

Então fomos ao banco, resolver problemas burocráticos, em algumas lojas, na banca de revistas e no cinema. Era o ano 2002 e eu tinha ido assistir Resident Evil I. E saí da sala querendo encontrar zumbis para matar. Então vi dois professores meus da escola com camisa do The Cure e fiquei satisfeito.

O céu estava cinza, já estava no fim da tarde. As luzes vermelhas de freio dos carros, ficavam borradas como aquarela por conta da chuva.

Consegui ir sentado no ônibus e estava a caminho de casa. Fiquei escrevendo palavrões na janela por conta da umidade que a chuva proporcionava para o vidro. Então quando já não tinha mais espaço eu limpava com o braço.

O trânsito ficou parado por um tempo. Tinha um ponto de ônibus ao lado de onde eu estava e fiquei encarando as pessoas e pensando o que elas faziam em suas vidas.

Estavam se espremendo por um abrigo no lugar seco. Então vi uma mulher olhando para mim com os olhos bem abertos. Lentamente ela levantou o braço esquerdo e fez o sinal de silêncio. Tipo um SHHHH!, como em fotos de enfermeiras no hospital.  Era a mesma velha de quando eu tinha saído de casa.

Tentei mostrar para a minha mãe, que estava em uma ligação no celular. Depois que a ligação terminou, eu apontei para ela, mas o ônibus já tinha dado partida e saído, e a água nos vidros dificultavam a visão. Disse a ela que era a mesma velha da morte de quando saímos de casa, mas ela não se lembrava e pediu, por favor, para eu ir pastar.

Depois de dois semáforos, meu ônibus parou novamente. Eu olhei para o lado e a mulher estava lá. Desta vez sozinha, parada com um guarda-chuva preto rasgado, sua jaqueta jeans e seus enfeites vermelhos. Ela mecheu a boca dizendo "Não fale", sem emitir nenhum som. Um fio de baba ligava o seu lábio inferior ao superior. A parte branca do olho dela estava um pouco amarelada e deu pra ver que alguns dentes estavam podres. Suas unhas eram enormes e não eram pintadas. Então o ônibus partiu.

Senti um medo que podia ser visível em cada poro do meu corpo, meu coração batia muito forte e meus pés estavam gelados. Decidi não contar nada, afinal a velha pediu duas vezes para eu fazer silêncio. Eu tinha 12 anos e não gostava de contestar assombrações.

Depois de 40 minutos, eu e minha mãe descemos do ônibus, e paramos no supermercado para comprar algumas coisas para o jantar. Eu já me sentia um pouco melhor.  Joguei alguns biscoitos no carro de compras e fui para a fila. Eu estava com muita fome, então abri um deles e fiquei comendo.

A conta deu R$23,00. Minha mãe deu duas notas de R$10 e uma de R$5. O caixa deu os dois reais de troco em moedas, quatro de 50 centavos, que ficaram para mim. Eu as peguei e guardei no bolso, mas uma caiu e saiu rolando em direção a saída do mercado. Fui atrás da moeda ainda rolando, até que ela perdeu o equilíbrio, caiu e ficou se debatendo no chão perto de uns sapatos pretos de camurça. Peguei a moeda e levantei a vista devagar e vi unhas compridas e alguns enfeites vermelhos no braço de uma velha, que olhou para mim e falou "Quando nos encontrarmos novamente, não serei eu" e sorriu.

Eu olhei para a minha mãe e depois olhei de volta para os sapatos de camurça que já não estavam mais lá. Apanhei a minha moeda e fui para casa. Então no outro dia eu dormi a tarde inteira, porque tinha passado toda a noite acordado...

Essa foi a minha história de fantasma. É bem decepcionante, eu sei. Queria ter contado que ela fez a chuva parar, e começou a chover ácido que derretia a rua e todo mundo corria como formiga embaixo de uma lupa num dia de sol, mas isso não aconteceu.

Queria ter comprado uma escova de dentes para ela, uma tinta vermelha para o seu cabelo violeta e perguntar quantos anos ela tinha. Ou pedir para ela contar uma história real de fantasmas. Mas tudo o que ela teve de mim foi o meu medo, que ela levou para um universo paralelo distante, onde todos fazem silêncio.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Boneco de neve

Bom, ele provavelmente é você.

Tudo estava muito frio. Era tão grande até onde a imaginação pode ver. Tudo era tão branco quanto uma folha de papel ou o homem ideal para Hitler. Não parecia haver teto nem céu, muito menos chão e onde pisar.

Ele saiu andando para frente, ou para os lados, é difícil dizer nessas condições, seu senso de direção parecia se limitar ao de um caranguejo. Ao longe viu uma poltrona preta, com um homem ou coisa com forma de homem, sentada. Era azul, muito magro e comprido. Tinha os cabelos pretos penteados para trás, usava óculos escuros, fumava um cigarro e estava sem roupas.  Não tinha sexo, mamilos ou umbigo. Seus olhos brilhantes como o reflexo de diamantes se destacavam por trás dos óculos, ofuscando sua tatuagem no braço esquerdo com o símbolo do Black Sabbath.

- Quem diabos é você?  - Ele disse.
- Esse mesmo. Disse o demônio, sereno e suave, como um monge do Tibet.

Ele perguntou se estava morto e o demônio respondeu dizendo que existiam muitas formas de se estar morto e que ele já estava morto bem antes de morrer. Então deu uma tragada no cigarro e expeliu em forma de cifrões pela sua boca com dentes triangulares e sorriu.

- Aqui é o inferno?
- Particularmente eu chamo de paraíso, mas sim. É o inferno.  Pelo menos o seu.
- Então onde está minha mulher?

O diabo se levantou, caminhou calmamente, com ar de superioridade até ele e sussurrou em seu ouvido sorrindo:

- Aposto que você vai chorar como uma garota loira rica que quebrou a unha, querendo que eu apareça novamente. E tudo sumiu.

Ele pareceu acordar. Estava tremendo de frio. Olhou pela janela e viu que o dia estava cinza. Saiu da cama, tomou café-da-manhã, viu que sua mulher já tinha saído, e se arrumou para o trabalho. Quando saiu de casa viu que as pessoas não tinham rosto, mas sim um grande desfoque de luz no rosto, como um borrão. Percebeu que estava mais silêncio que o normal. Nenhum som diferente de buzinas e passos se destacava. Entrou no carro, e levou sua rotineira uma hora e meia para chegar ao trabalho. Respirando fumaça e lendo propagandas de outdoors que o mantinham constantemente estúpido.

Ele tinha um emprego normal. Com chefe, metas, projetos, trimestres e resultados, senão, rua. Tentou puxar conversa com o colega do cubículo ao lado, para ver se tinha percebido algo estranho naquele dia, mas o colega não pareceu escutar, estava ocupado demais falando ao telefone com algum possível cliente, ou com sua amante. O dia correu como sempre, demorado, sem piadas e sem surpresas. Então Ele voltou para casa.

A garagem se abriu e Ele entrou com o carro, quando entrou, a garagem parecia não ter fim, dirigiu reto por horas, até começar a sentir frio e a neve grudar nos pneus do carro. O automóvel se desligou sozinho e foi deslizando pelo chão de gelo. Chegou a quase tocar no demônio, que estava, novamente, fumando um cigarro com a ponta de fogo azul. Enquanto uma jukebox tocava In the Mood, de Gleen Miller, ao seu lado.

- O que achou do dia hoje? – Perguntou o demônio.
- Afinal, o que é isso, eu morri?
- Sim.
- E porque fiz as coisas que sempre fiz quando estava vivo, se estou morto? O que significa isso? E porque você não usa umas roupas?
- Bom, essa é sua vida, ou seja lá o que você chama daquilo. E essa é a sua tortura. Na verdade você me poupou bastante trabalho. 
- Como?

Ele não fez nada com sua vida nem iria fazer. Todos os dias pareciam iguais. Sem nenhuma imaginação, sem nenhuma mudança. Todas as coisas estariam ali, como sempre estiveram. Então o D. como possuidor de sua alma, o torturou, fazendo de seu último  dia sua eternidade até os infinitos confins do cosmos, ser um loop contínuo. Nada mudaria, nem nada iria mudar. Toda a sua consciência e percepção ainda estariam com ele, numa realidade de borrões, cubículos, sons de buzinas e propagandas.

Numa tarde, ele gritou chorando, como garota loira rica que quebrou a unha, clamando pela companhia, nem que fosse a do demônio. Mas passou tão despercebido quanto um fio de cabelo branco de um louco, preso numa solitária em um hospício público. Ou do prazer sexual da mulher de um servidor público.

Dois anos ou três milhões de anos se passaram e ele fazia a mesma coisa todos os dias. Sempre as mesmas pessoas falando ao telefone,  sem nenhum pombo a mais que o normal, sem nenhum contato, sem nenhum sonho ao dormir. Ele não podia fazer nada diferente, não saberia como.

- E quem é ele?  – Um recém chegado ao inferno perguntou a um boneco de neve, que repetia a história ininterruptamente a todos que apareciam.

O boneco de neve mastigou a cenoura que estava no seu nariz e disse:
 – Bem, Ele provavelmente é você.

O caso XXXXX

Olá, seja você quem for, não me interessa o que você esteja fazendo além de ler isso, apenas esqueça e preste atenção. Não tenho muito tempo, eles estão me perseguindo. Estou escondido nos esgotos de Londres, com apenas uma lanterna que roubei do guarda para poder escrever isso. Vou morrer em breve quando eles me pegarem. Não os guardas. Ou minha mulher. Ou minha amante. Ou minha outra amante. Mas Eles.

Isso foi há dois dias, quando comecei a sonhar com essas estradas gigantes suspensas no céu. As nuvens pareciam ser feitas de poeira.  Corri muito e muito, até ver ao longe um local que parecia um bar. Quando cheguei mais perto, vi que realmente era um bar. Com neon quebrado na entrada e um garçom enxugando copos com uma toalha branca no ombro, fumando um cigarro.

Assim que cheguei ao local, uma mulher loira de vestido vermelho e uma pinta preta em cima da boca me puxou e disse,  - Rápido, eu estava esperando por você! No começo achei que era um daqueles sonhos onde eu comia um monte de mulheres e acordaria gozado e daria um beijo em minha mulher para esconder a traição que acontecia em minha mente. - Isso nunca aconteceu comigo, mas já escutei histórias.

Assim que me sentei ao lado dela, a tal loira me falou,  XXXXX, rápido, beba isso, antes que eles cheguem. (Desculpe, mas é mais seguro para você se eu não revelar o meu nome).

Ela me ofereceu um líquido roxo que borbulhava bastante e saia muita fumaça. Eu disse que não iria beber aquilo, mas ela insistiu muito. E quando eu escutei os motores de moto roncando do lado de fora, e ela começando a chorar dizendo que eles tinham chegado, eu bebi. Subitamente eu acordei sujo de areia e com uma vontade horrível de vomitar. Fui até o banheiro e vomitei. Tudo o que saiu foi o mesmo líquido roxo com muita fumaça. Tentei racionalizar o que diabos estava acontecendo. Fiquei paralisado olhando para aquilo por uns dez minutos.

PORRA! Acho que algum rato tentou subir pela minha perna. Tem mais alguém neste esgoto. Eu não estou sozinho aqui.  Depois que eu descobrir o que é, voltarei a escrever...

Era um d’Eles! Consegui despistá-lo. Estou bastante ferido agora, minha perna dói. Corri muito. Onde eu estava? Ah!

Depois que vomitei aquela coisa roxa, tive muito sono. Mas eu tinha acabado de acordar. Como era meu dia de folga, decidi voltar a dormir. Novamente voltei a sonhar com a loira, no mesmo bar, na mesma situação. Como se o meu despertar tivesse dado um pause, na história.

Vamos, por aqui XXXXX, aqui tem uma saída. Disse a loira, segurando minha mão e correndo com o vestido tremulando ao vento.

Fugi junto com ela e perguntei o que estava acontecendo. Ela me falou que aqueles motoqueiros queriam matá-la. E que só eu podia salvá-la, que eu tinha sido o escolhido para protegê-la, e quando eu bebia aquele líquido, ela viveria mais.

A loira com a pinta em cima da boca segurou minha mão bem forte e pediu para que eu bebesse o líquido novamente. Eu disse que não. Enquanto os motoqueiros se aproximavam cada vez mais rápidos e gritando juras de morte para a loira, pequenos insetos metálicos e enferrujados começaram a aparecer, as nuvens giravam como água perto de um ralo e tudo estava ficando negro. Bebi novamente aquela poção roxa que se destacava na escuridão e acordei. Era o único jeito de eu sair dali. Corri para o banheiro e vomitei muito, bem mais que a outra vez.

Algum tempo depois que acordei alguém bateu na porta. Já eram cinco da tarde. Nunca tinha dormido tanto. Eram os mesmos motoqueiros do sonho e notei que os dois tinham uma tatuagem de insetos. Perguntaram se meu nome era XXXXX e eu respondi.

Sim, esse é o meu nome.

Você terá de vir conosco.

Espere um minuto, eu conheço vocês! -Eu disse.

É claro que sim.

Então eles me amarraram, vendaram, jogaram dentro de um furgão, e bateram a porta.

Pensei que eles iam comer meu rabo e me matar depois. Essas notícias merdas sempre aparecem na TV.

Quando eles tiraram minha venda, eu me vi numa casa fudida e sem móveis, mas bem grande, num estilo vitoriano, com se estivesse abandonada por três séculos e quinze dias.

Disseram que sentiam muito, mas teriam que me sacrificar. Eu disse que não sabia de nada. Que não conhecia ninguém importante e não tinha dinheiro, mas poderia oferecer toda a quantia que tinha no banco e prometi não dizer nada a ninguém. Isso não adiantou, quando um deles questionou.


Mas senhor, tem mesmo que sacrificá-lo? – Disse um dos motoqueiros.

É claro que sim. Senão, mais portais se abrirão.

Mas ele pode virar um dos nossos senhor...

Não, ele vai ser igual a ela. São todos iguais a ela.

Mas o senhor mesmo viu que...

Enquanto eles discutiam, tentei desamarrar as cordas que prendiam meus pulsos. Consegui desamarrar uma das cordas. Como Butch, em Pulp Fiction. Então desatei o nó que prendia minhas pernas e fiquei parado, fingindo ainda estar amarrado. O motoqueiro que parecia ser o líder foi para o lado de fora pegar o machado de ouro para eventualmente me liquidar. Enquanto seu subalterno disse:

– Rápido, corra!
Fiquei surpreso olhando para ele, e ele repetiu.

– Rápido idiota, corra!

Levante-me num pulo e corri por entre as ruas e becos de Londres que se escondiam por trás de nevoas. De longe pude escutar o subalterno dizer:

– Senhor! O XXXXX fugiu.

Depois de várias ruas me perdi. Parei em uma pousada, dei um nome falso para o dono e me hospedei. Estava muito cansado para ir à polícia e eles fingirem que iriam fazer alguma coisa a respeito. Além disso, estava com pouco dinheiro. Apenas o suficiente para passar a noite num lugar barato. Joguei o dinheiro em cima do balcão, peguei a chave do meu quarto e deitei na cama com molas barulhentas e colchão encardido e dormi.  Podia ouvir barulhos de ratos por todo o quarto, quando...


Eles lhe encontraram? – Disse a loira de vestido vermelho.

Que? Encontraram! O que porra está acontecendo? Isso é um sonho? Aquilo foi um sonho?

Calma XXXXX, tudo será explicado. Agora beba!

Ao longe vinha o motoqueiro subalterno que me ajudou, gritando.

 Não XXXXX , não beba. Ela está lhe enganando! Você ainda está sonhando.

Rápido XXXXX beba. É o único jeito de você me salvar. – Insistiu a loira gostosa da pinta preta em cima da boca.

Eu disse a ela que não iria beber aquilo e dei um tapa no copo, que derramou o líquido e evaporou em forma de música. Então o rosto dela começou a derreter e ela gritava muito alto, com uma voz de um equalizador quebrado pedindo ajuda repetidamente em todos os idiomas.

Os insetos metálicos e enferrujados agora estavam maiores, do tamanho de carros, o céu se movia cada vez mais rápido, como se sugasse as almas azuis dos mortais de todos os planetas de todas as galáxias. Os sonhos que eu já tivera por toda minha vida apareciam ao mesmo tempo e eu podia estar presente em todos simultaneamente, com visão de 360graus e baixa gravidade.

Em meio a toda aquela poeira, tempestade e gritos finos de socorro, o subalteno  me dizia:

XXXXX, ela quer viver! Ela e nós, só vivemos nos sonhos. Cada vez que você bebe essa poção você tem vontade de dormir, é quando ela pode viver. Ela quer que você durma o máximo que conseguir até você se esgotar e morrer. Daí então ela será o sonho de outra pessoa e fará a mesma coisa. Apenas se você não dormir, ela deixará de existir. Por isso temos que matar você. Eu lamento muito, mas não posso deixar isso acontecer com o resto dos mortais!

– Não! O que merda eu posso fazer? – Eu gritei.
– Você? Não muito!
– Então porque você me ajudou? Não deixou seu “Senhor” me matar de uma vez?
– Achei que você poderia virar um guardião como nós!
– Mas eu posso!
– Não, não pode!
– Por quê?
– Você é fraco demais, sonha demais! O pesadelo lhe sucumbirá e levará você para o lado dele, ou dela. Ele possui muitas formas...
- Mas que porr...?

O resto dos motoqueiros chegaram em disparada ao meu redor, andando em círculos com suas motos e correntes, prontos para dar um fim naquilo, no meio da tempestade de nuvens de poeira. Um deles empinou a moto, veio em minha direção e mirou sua corrente em minha cara. Ele estava a alguns centímetros de me acertar. Tão perto que pude ver sua tatuagem novamente.

O dono da pousada bateu na porta avisando que minha hora já tinha acabado. Acordei suado e todo sujo novamente, por conta da fuligem dos insetos gigantes que tinham se misturado as nuvens. De certo modo o velho me salvou, me acordando. Vesti minha camisa e meu casado e saí. O velho falou que vieram uns caras procurando um tal de XXXXX, ele achou que poderia ser eu, e falou que em pouco tempo eu deveria sair. Pedi um papel e uma caneta ao velho, o chamei de imbecil por ter dado informações e saí. Depois voltei e agradeci. Corri muito. Lembrei que os esgotos de Londres eram um ótimo local para se esconder de sonhos.

Eu estava muito sujo e com cara de bêbado, correndo na madrugada,  até o momento que um policial me parou para revistar. Ele ligou a lanterna e pediu meus documentos. Fingi pegar algo do bolso e rapidamente roubei sua lanterna e corri outra vez. Acho que ele ficou parado por um tempo, tentando entender porque porra eu roubei uma lanterna. Mas mesmo assim ele gritou dando ordem para eu parar e atirou para cima. Me assustei e corri para o subsolo.

Agora estou aqui no esgoto. Escrevendo isso para vocês. Não sei por que estou escrevendo. Acho que é porque vou morrer. Estou com medo. É tudo o que consegui pensar em fazer para me manter acordado por enquanto. É o único jeito de eu fugir dos meus sonhos, antes que eles me matem.

Espere!

Que de barulho foi esse?