segunda-feira, 6 de maio de 2013

Boneco de neve

Bom, ele provavelmente é você.

Tudo estava muito frio. Era tão grande até onde a imaginação pode ver. Tudo era tão branco quanto uma folha de papel ou o homem ideal para Hitler. Não parecia haver teto nem céu, muito menos chão e onde pisar.

Ele saiu andando para frente, ou para os lados, é difícil dizer nessas condições, seu senso de direção parecia se limitar ao de um caranguejo. Ao longe viu uma poltrona preta, com um homem ou coisa com forma de homem, sentada. Era azul, muito magro e comprido. Tinha os cabelos pretos penteados para trás, usava óculos escuros, fumava um cigarro e estava sem roupas.  Não tinha sexo, mamilos ou umbigo. Seus olhos brilhantes como o reflexo de diamantes se destacavam por trás dos óculos, ofuscando sua tatuagem no braço esquerdo com o símbolo do Black Sabbath.

- Quem diabos é você?  - Ele disse.
- Esse mesmo. Disse o demônio, sereno e suave, como um monge do Tibet.

Ele perguntou se estava morto e o demônio respondeu dizendo que existiam muitas formas de se estar morto e que ele já estava morto bem antes de morrer. Então deu uma tragada no cigarro e expeliu em forma de cifrões pela sua boca com dentes triangulares e sorriu.

- Aqui é o inferno?
- Particularmente eu chamo de paraíso, mas sim. É o inferno.  Pelo menos o seu.
- Então onde está minha mulher?

O diabo se levantou, caminhou calmamente, com ar de superioridade até ele e sussurrou em seu ouvido sorrindo:

- Aposto que você vai chorar como uma garota loira rica que quebrou a unha, querendo que eu apareça novamente. E tudo sumiu.

Ele pareceu acordar. Estava tremendo de frio. Olhou pela janela e viu que o dia estava cinza. Saiu da cama, tomou café-da-manhã, viu que sua mulher já tinha saído, e se arrumou para o trabalho. Quando saiu de casa viu que as pessoas não tinham rosto, mas sim um grande desfoque de luz no rosto, como um borrão. Percebeu que estava mais silêncio que o normal. Nenhum som diferente de buzinas e passos se destacava. Entrou no carro, e levou sua rotineira uma hora e meia para chegar ao trabalho. Respirando fumaça e lendo propagandas de outdoors que o mantinham constantemente estúpido.

Ele tinha um emprego normal. Com chefe, metas, projetos, trimestres e resultados, senão, rua. Tentou puxar conversa com o colega do cubículo ao lado, para ver se tinha percebido algo estranho naquele dia, mas o colega não pareceu escutar, estava ocupado demais falando ao telefone com algum possível cliente, ou com sua amante. O dia correu como sempre, demorado, sem piadas e sem surpresas. Então Ele voltou para casa.

A garagem se abriu e Ele entrou com o carro, quando entrou, a garagem parecia não ter fim, dirigiu reto por horas, até começar a sentir frio e a neve grudar nos pneus do carro. O automóvel se desligou sozinho e foi deslizando pelo chão de gelo. Chegou a quase tocar no demônio, que estava, novamente, fumando um cigarro com a ponta de fogo azul. Enquanto uma jukebox tocava In the Mood, de Gleen Miller, ao seu lado.

- O que achou do dia hoje? – Perguntou o demônio.
- Afinal, o que é isso, eu morri?
- Sim.
- E porque fiz as coisas que sempre fiz quando estava vivo, se estou morto? O que significa isso? E porque você não usa umas roupas?
- Bom, essa é sua vida, ou seja lá o que você chama daquilo. E essa é a sua tortura. Na verdade você me poupou bastante trabalho. 
- Como?

Ele não fez nada com sua vida nem iria fazer. Todos os dias pareciam iguais. Sem nenhuma imaginação, sem nenhuma mudança. Todas as coisas estariam ali, como sempre estiveram. Então o D. como possuidor de sua alma, o torturou, fazendo de seu último  dia sua eternidade até os infinitos confins do cosmos, ser um loop contínuo. Nada mudaria, nem nada iria mudar. Toda a sua consciência e percepção ainda estariam com ele, numa realidade de borrões, cubículos, sons de buzinas e propagandas.

Numa tarde, ele gritou chorando, como garota loira rica que quebrou a unha, clamando pela companhia, nem que fosse a do demônio. Mas passou tão despercebido quanto um fio de cabelo branco de um louco, preso numa solitária em um hospício público. Ou do prazer sexual da mulher de um servidor público.

Dois anos ou três milhões de anos se passaram e ele fazia a mesma coisa todos os dias. Sempre as mesmas pessoas falando ao telefone,  sem nenhum pombo a mais que o normal, sem nenhum contato, sem nenhum sonho ao dormir. Ele não podia fazer nada diferente, não saberia como.

- E quem é ele?  – Um recém chegado ao inferno perguntou a um boneco de neve, que repetia a história ininterruptamente a todos que apareciam.

O boneco de neve mastigou a cenoura que estava no seu nariz e disse:
 – Bem, Ele provavelmente é você.

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