terça-feira, 7 de maio de 2013

Minha história de fantasma

Eu estava de saída. Foi depois disso, quando cheguei em casa, que pensei em contar a minha história de fantasma, mas achei melhor não, porque ela me pediu para fazer silêncio. Eu tinha 12 anos e era idiota.

Talvez nem fosse um fantasma. Talvez alguém conseguiu atravessar de um universo paralelo para o nosso em um buraco de minhoca pelo tecido espaço-tempo  e depois desapareceu, porque acabou a energia da estrela. Obviamente.

Fui com minha mãe para a cidade. Minha mãe adora espíritos. Do bem. Ela pensa que os do mal vivem nas trevas, na escuridão e imersos em rios poluídos, com armas, calor e agonia. Ou aqui mesmo no Brasil.

Então saí de casa e fui para a parada do ônibus. Estávamos nos meses de inverno, acho que era Junho. Lembro disso porque era perto do meu aniversário. Chovia bastante, e como eu queria ser descolado, não levei um guarda-chuva. Só velhos com medo de ficarem doentes e meninas preocupadas com o cabelo, usam guarda-chuvas. Eu pensava. Então minha mãe disse para eu calar a boca e mandou eu voltar para pegar o guarda-chuva. E eu peguei. Depois fomos para o ponto do ônibus.

Fiquei esperando vários minutos. Os pingos eram grossos e faziam barulho de animais metálicos sapateando pelo zinco. Na parada estava eu, minha mãe e uma mulher muito velha, com um vestido branco florido, casaco jeans meio surrado, muitas pulseiras e braceletes vermelhos. E colares de bolinhas. E um par de brincos de pérolas. Falsas claro. O cabelo era amarelado, com pontas violetas. Você sabe, aquele violeta que velhas sempre tem no cabelo, por alguma razão ainda não muito bem explicada para mim.

Não era um tipo de velha que você tem pena, mas aquelas velhas que são tão velhas que talvez elas tenham feito um pacto com as trevas para viver tanto. E parecem morar sozinhas, em casas altas com móveis bem grandes, empoeirados e pesados, de madeira escura cheio de detalhes, com vários gatos pela casa.

Meu transporte estava chegando. Pude ver de longe os faróis amarelos num horizonte cinza e borrado. O clima estava muito frio e chovia muito. Então quando o ônibus parou. Saíram vapores de água do motor, parecendo que o veículo viera de outro mundo. E quando ele deu partida deixou à fumaça para trás. Juntamente com a velha, sozinha na chuva forte.

Então fomos ao banco, resolver problemas burocráticos, em algumas lojas, na banca de revistas e no cinema. Era o ano 2002 e eu tinha ido assistir Resident Evil I. E saí da sala querendo encontrar zumbis para matar. Então vi dois professores meus da escola com camisa do The Cure e fiquei satisfeito.

O céu estava cinza, já estava no fim da tarde. As luzes vermelhas de freio dos carros, ficavam borradas como aquarela por conta da chuva.

Consegui ir sentado no ônibus e estava a caminho de casa. Fiquei escrevendo palavrões na janela por conta da umidade que a chuva proporcionava para o vidro. Então quando já não tinha mais espaço eu limpava com o braço.

O trânsito ficou parado por um tempo. Tinha um ponto de ônibus ao lado de onde eu estava e fiquei encarando as pessoas e pensando o que elas faziam em suas vidas.

Estavam se espremendo por um abrigo no lugar seco. Então vi uma mulher olhando para mim com os olhos bem abertos. Lentamente ela levantou o braço esquerdo e fez o sinal de silêncio. Tipo um SHHHH!, como em fotos de enfermeiras no hospital.  Era a mesma velha de quando eu tinha saído de casa.

Tentei mostrar para a minha mãe, que estava em uma ligação no celular. Depois que a ligação terminou, eu apontei para ela, mas o ônibus já tinha dado partida e saído, e a água nos vidros dificultavam a visão. Disse a ela que era a mesma velha da morte de quando saímos de casa, mas ela não se lembrava e pediu, por favor, para eu ir pastar.

Depois de dois semáforos, meu ônibus parou novamente. Eu olhei para o lado e a mulher estava lá. Desta vez sozinha, parada com um guarda-chuva preto rasgado, sua jaqueta jeans e seus enfeites vermelhos. Ela mecheu a boca dizendo "Não fale", sem emitir nenhum som. Um fio de baba ligava o seu lábio inferior ao superior. A parte branca do olho dela estava um pouco amarelada e deu pra ver que alguns dentes estavam podres. Suas unhas eram enormes e não eram pintadas. Então o ônibus partiu.

Senti um medo que podia ser visível em cada poro do meu corpo, meu coração batia muito forte e meus pés estavam gelados. Decidi não contar nada, afinal a velha pediu duas vezes para eu fazer silêncio. Eu tinha 12 anos e não gostava de contestar assombrações.

Depois de 40 minutos, eu e minha mãe descemos do ônibus, e paramos no supermercado para comprar algumas coisas para o jantar. Eu já me sentia um pouco melhor.  Joguei alguns biscoitos no carro de compras e fui para a fila. Eu estava com muita fome, então abri um deles e fiquei comendo.

A conta deu R$23,00. Minha mãe deu duas notas de R$10 e uma de R$5. O caixa deu os dois reais de troco em moedas, quatro de 50 centavos, que ficaram para mim. Eu as peguei e guardei no bolso, mas uma caiu e saiu rolando em direção a saída do mercado. Fui atrás da moeda ainda rolando, até que ela perdeu o equilíbrio, caiu e ficou se debatendo no chão perto de uns sapatos pretos de camurça. Peguei a moeda e levantei a vista devagar e vi unhas compridas e alguns enfeites vermelhos no braço de uma velha, que olhou para mim e falou "Quando nos encontrarmos novamente, não serei eu" e sorriu.

Eu olhei para a minha mãe e depois olhei de volta para os sapatos de camurça que já não estavam mais lá. Apanhei a minha moeda e fui para casa. Então no outro dia eu dormi a tarde inteira, porque tinha passado toda a noite acordado...

Essa foi a minha história de fantasma. É bem decepcionante, eu sei. Queria ter contado que ela fez a chuva parar, e começou a chover ácido que derretia a rua e todo mundo corria como formiga embaixo de uma lupa num dia de sol, mas isso não aconteceu.

Queria ter comprado uma escova de dentes para ela, uma tinta vermelha para o seu cabelo violeta e perguntar quantos anos ela tinha. Ou pedir para ela contar uma história real de fantasmas. Mas tudo o que ela teve de mim foi o meu medo, que ela levou para um universo paralelo distante, onde todos fazem silêncio.

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